objetos: vícios
ESSE É o subtítulo de um estudo publicado recentemente (2006) pela Routledge, "The Self Psychology of Addiction and its Treatment" (a psicologia-do-self da adicção e de seu tratamento). Os autores, Richard Ulman e Harry Paul, são psicanalistas (da psicologia do self, a escola de Heinz Kohut), terapeutas de toxicômanos e eles mesmos drogadictos em remissão.
O estudo, embora estritamente clínico, propõe uma visão da toxicomania que, ao meu ver, vale como interpretação geral da modernidade. Explico.
Na laboriosa tentativa de encontrar um lugar no mundo, cada um de nós se alimenta de duas fontes: 1) as aspirações, as normas e os brasões transmitidos por nossos ascendentes, coisas que podem nos dar a sensação de que temos uma missão na vida; 2) o amor, mais ou menos incondicional, que nos acolhe e agasalha nos primórdios de nossa existência permitindo, aliás, que ela vingue.
Em suma: legados paternos e cuidados maternos (é óbvio que qualquer um pode fazer função de pai ou de mãe).
Ora, na modernidade, bebemos sobretudo na segunda fonte. Por isso, somos todos narcisos, ou seja, mais preocupados em sermos gostados, amados e admirados pelos outros do que com deveres e princípios.
Problema: em geral, o modelo do amor graças ao qual seríamos "alguém" (que sempre significa "alguém muito especial") é o momento em que, pendurados ao peito materno, ou melhor, com a mãe pendurada aos nossos lábios, estaríamos ao centro de um mundo controlado por nós: basta chamar, chorar etc. para que ela apareça e nos faça felizes.
Logicamente, com esse sonho narcisista encravado no nosso âmago, torna-se difícil lidar com separações, frustrações etc. E, infelizmente, o mundo é um pouco mais cruel do que a mãe-padrão e sempre muito mais cruel do que a mãe mítica e escrava que gostaríamos de ter tido.
Como aprendemos a encarar perdas, danos e fracassos?
Quem lia as tiras de Charlie Brown, de Charles Schultz, deve se lembrar do cobertor que Linus carregava sempre consigo: quando as coisas não iam bem, ele agarrava o cobertor e chupava o dedo; era seu jeito de reencontrar, momentaneamente, a felicidade perdida. O cobertor de Linus é um exemplo perfeito do que D. W. Winnicott, um grande psicanalista, chamou de "objetos transicionais": são objetos inanimados, mas que representam um amor do qual não conseguimos ainda nos separar.
Eles funcionam como o lápis entre os dentes do fumante que quer parar de fumar: não substitui o cigarro, mas, na luta para deixar o vício, oferece conforto nas crises de abstinência. Ou como a mamadeira da noite quando o desmame acabou há tempos, mas ainda bate, digamos assim, uma "nostalgia amorosa".
À força de brincar com cobertores e chupetas, a gente deveria aprender a 1) dispensar cobertores e chupetas, 2) lidar com a precariedade da presença e do amor dos outros. Mas não é tão simples assim, até porque, nessa tarefa, o mundo não nos ajuda. Narciso vive no país das maravilhas, diante de uma imensa vitrina de objetos que nos prometem o seguinte: ao alcançá-los, ganharemos o amor, a admiração e (por que não) a inveja de todos. E alcançá-los é fácil -basta comprar: chocolate, relógios, charutos ou pacotes de férias.
Quem precisa de amores incertos com pessoas de verdade ou de objetos "transicionais" que as representem? Os objetos do consumo são a melhor escolha; sobre eles temos um controle absoluto.
As drogas propriamente ditas oferecem algumas vantagens marginais: são baratas e, graças à crise de abstinência, garantem a ilusão de dominar perfeitamente a alternância de insatisfação e contentamento. Mas, na verdade, para Narciso no país das maravilhas, qualquer objeto de consumo serve.
Poderia ser o melhor dos mundos, se não fosse por dois detalhes. 1) Se hesito entre um carro e uma amizade ou um amor, é bem provável que minha experiência afetiva seja miserável; 2) se espero a felicidade dos objetos, desaprendo a agir e a desejar. No próximo domingo é a primeira fase da Fuvest, e passei o ano dormindo no cursinho? Não é o caso de me desesperar, vou para o shopping comprar um sapato simplesmente "divino".
Agora, falando sério, por que se opor à liberação das drogas? Afinal, a maioria dos objetos em venda livre satisfaz, no fundo, um anseio parecido com o do toxicômano. Relaxe e goze...
ccalligari@uol.com.br
2 comentários:
"Querer ir morrer a Pequim e não poder é das coisas que pesam sobre mim como a idéia dum cataclismo vindouro.
Os compradores de coisas inúteis sempre são mais sábios do que se julgam - compram pequenos sonhos. São crianças no adquirir. Todos os pequenos objectos inúteis cujo acenar ao saberem que têm dinheiro os faz comprá-los, possuem-nos na atitude feliz de uma criança que apanha conchinhas na praia - imagem que mais do que nenhuma dá toda a felicidade possível. Apanha conchinhas na praia! Nunca há duas iguais para a criança. Adormece com as duas mais bonitas na mão, e quando lhas pedem ou tiram - o crime! roubar-lhe bocados exteriores da alma! arrancar-lhe pedaços de sonho! - chora como um Deus a quem roubassem um universo recém-criado".
Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, a.k.a. F.P.
Eu fico feliz de retornar aqui e descobrir que eu não sou a unica que se interessa por essas coisas...
Sempre narciso..A psicologia aliás explica essa coisa de buscar aceitação esse vazio existencial, tudo baseado em narciso. Narcisismo primario e secundario. Além de sermos castrados em edipo, quando queremos o nosso pai do sexo oposto e descobrimos que não podemos ter, o narcisismo secundario ocorre extamente ai onde a ferds explicou: sentimos uma proteção , nos sentimos preeenchidos quando no peito da nossa mãe... quando paramos de amamentar, mais um vazio...é uma maravilha...
mulheres aliás são rejeitadas tres vezes: pela mãe, pelo pai e qdo descobrem que não tem "falo", para ser bonitinha....rs
o vazio feminino é muito maior e explica tanta coisa, mas tanta, que se eu ficar falando isso demais, além de surtar, vou surtar todo mundo que ler...mas é isso mesmo: o consumo, as drogas, todas as Hedonias possiveis nós queremos viver, apenas com o intuito de algum modo, preencher esse eterno vazio...
Por isso que é bom ficar de olho, pra não virar escravo disso tudo. Prazer é bom demais, mas de tempos em tempos, a gente tem que encarar ele de frente, olhar dentro do olho com autoridade, só pra lembrar de vez em quando, QUEM MANDA EM QUEM..
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