domingo, agosto 06, 2006

Voto nulo e amor de mãe
Guilherme Fiuza


A patrulha do bem tem uma característica inconfundível: se move sempre com a certeza de carregar a verdade absoluta. Daí o feitio quase religioso de suas cruzadas. Os virtuosos estão em campo de novo, agora para mostrar aos distraídos que o voto nulo é ruim para a democracia. Não ouse discordar. Você será tachado de alienado, ignorante ou agente involuntário da corrupção.

Votar nulo está errado, avisam os éticos. E não fique chateado, eles só querem o seu bem. Você é um sujeito distraído que não sabe o que é bom para você, mas para sua sorte tem alguém que sabe. E que vai lhe dizer o que fazer.

Ideais puros são sempre comoventes. Adolf Hitler também acreditou, do fundo da alma, que era preciso purificar a raça humana. Aquilo era tão evidente que o líder alemão resolveu pular a etapa da polêmica: quem fosse contra ia para a prisão ou para debaixo da terra. De fato, quando se tem a certeza da verdade, é irritante perder tempo com discussões inúteis.

Quando o bizarro Enéas foi eleito deputado por São Paulo com uma votação histórica, a patrulha do bem avisou: aquilo era um absurdo. Intelectuais, cientistas políticos e outros guardiões da democracia alertavam que havia algo errado com o eleitorado. São realmente interessantes, esses democratas: amam e defendem a democracia, desde que ela seja praticada conforme o script que trazem dobrado no bolso.

Votar no Enéas está errado. Votar nulo também está errado. Os homens de bem têm o manual de instruções da democracia, portanto é bom não discordar deles. Se você usar sua consciência para votar nulo, você estará beneficiando os políticos fisiológicos, que se mantêm há tanto tempo no poder manobrando o voto dos não-conscientes. Como se vê, eles pensaram em tudo para você. Não é preciso fazer nada, apenas segui-los.

O que é pior: o voto nulo ou o voto entediado? Um eleitorado entediado é capaz, por exemplo, de eleger uma Rosinha Garotinho em primeiro turno. Note-se que o tédio pode ser mais anárquico que a própria anarquia.

O problema da patrulha do bem é que ela, no fundo, detesta a liberdade. Se deixar essa gente solta por aí – pensam eles –, fazendo o que lhe dá na telha, votando no Seu Creysson e no Macaco Tião, vão acabar melando a democracia. Foi mais ou menos o que os militares pensaram no golpe de 64: esse povo distraído fica votando errado, elegendo comunista, e isso aqui vai acabar virando uma ditadura; vamos suspender um pouco esse negócio de voto, para proteger a democracia.

Os mais jovens podem achar que é piada, mas no movimento que instalou a ditadura militar de 64 havia, de fato, gente sinceramente preocupada em proteger a democracia. Assim como essa turma que defende uma constituinte restrita acha, sinceramente, que mudando as pessoas e as regras, ficará para trás o velho fisiologismo e tráfico de influência. De fato ficará, abrindo caminho para fisiologismos e tráficos de influência novos em folha.

Sentinelas do bem, deixem as pessoas votarem como bem entenderem. Deixem as pessoas não votarem, se não quiserem. Deixem as pessoas serem indignadas ou ignorantes a seu modo. Deixem as pessoas deixarem o sistema cair de podre, se for o caso.

Deixem a MTV esculachar os políticos, se ela quiser. Vocês admitiram durante tanto tempo Dirceu, Silvinho e Delúbio como soldados do bem contra o mal. Por que não admitir agora que as pessoas queiram jogar Lula, Alckmin e Heloísa Helena, juntos e bem embrulhados, na mesma lata de lixo?

Votar nulo é um direito. Pode ser um erro. Mas esse diagnóstico não cabe aos patrulheiros. Cabe à história. E ela não costuma diagnosticar em tempo real.

Aos que querem “salvar” as consciências distraídas, é bom lembrar que democracia é como amor de mãe: respeitando a liberdade é uma maravilha, capando-a é uma tragédia.



obs: negritos meus.

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